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quinta-feira, fevereiro 11, 2010

Exerto de Tenda dos Milagres

Imagem: Carybé

Diálogo entre Pedro Arcanjo e o Prof. Fraga Neto

__ Durante anos e anos acreditei nos meus orixás como frei Timóteo acredita nos seus santos, no Cristo e na Virgem. Nesse tempo tudo que eu sabia aprendera na rua. Depois busquei outras fontes de saber, ganhei novos bens, perdi a crença. O senhor é materialista, professor, não li os autores que o senhor cita, mas sou tão materialista quanto o senhor. Ainda mais, quem sabe?
__Ainda mais? E por quê?
__Porque sei, como o senhor sabe, que nada existe além da matéria mais sei também que, mesmo assim, às vezes o medo enche meu tempo e me perturba. O meu saber não me limita, professor.
__Explique isso.
__Tudo aquilo que foi meu lastro, terra onde tinha fincado os pés, tudo se transformou num jogo fácil de adivinhas. O que era milagrosa descida dos santos reduziu-se a um estado de transe que qualquer calouro da Faculdade analisa e expõe. Para mim, professor, só existe a matéria. Mas nem por isso deixo de ir ao terreiro e exercer as funções de meu posto de Ojuobá, cumprir com meu compromisso. Não me limito como o senhor que tem medodo que os outros possam pensar, ter medo de diminuir o tamanho de seu materialismo.
__Sou coerente, você não é! __explodiu Fraga Neto. __ Se não acredita mais, não acha desonesto praticar uma farsa, como se acreditasse?
__Não. Primeiro, como já lhe disse, gosto de dançar e de cantar, gosto de festa, antes de tudo de festa de candomblé. Ademais, há o seguinte: estamos numa luta, cruel e dura. Veja com que violência querem destruir tudo que nós, negros e mulatos, possuímos, nossos bens, nossa fisionomia. Ainda há pouco tempo, com o delegado Pedrito, ir a um candomblé era um perigo, o cidadão arriscava a liberdade e até a vida. O senhor sabe disso, já conversamos a respeito. Mas, sabe quantos morreram? Sabe por acaso por que essa violência diminuiu? Não acabou, diminiu. Sabe por que delegado foi posto na rua? Sabe como se deu?
__Já ouviu contar, mais uma vez. Uma história de absurdos com seu nome no meio.
__O senhor pensa que , se eu fosse discutir com o delegado Pedrito, como estou discutindo com o senhor, teria obtido algum resultado? Se eu houvesse proclamado meu materialismo, largado de mão o candomblé, dito que tudo aquilo não passava de um brinquedo de crianças, resultados do meio primitivo, da ignorância e da miséria, a quem eu ajudaria? Eu ajudaria, professor, ao delegado Pedrito e sua malta de facínoras, ajudaria a acabar com uma festa do povo. Prefiro continuar a ir ao candomblé, ademais gosto de ir, adoro puxar cantiga e dançar em frente aos atabaques.
__Assim, mestre Pedro, você não ajudaria a modificar a sociedade, não transforma o mundo.
__Será que não? Eu penso que os orixás são um bem do povo. A luta de capoeira, o samba -de- roda, os afoxés, os atabaques, os berimbaus, são bem do povo. Todas essas coisas e muitas outras que o senhor, com seu pensamento estreito, quer acabar, professor, igualzinho ao delegado Pedrito, me desculpe lhe dizer. Meu materialismo não me limita. Quanto a transformação, acredito nela, professor, e será que nada fiz ajudá-la?
O olhar se perdeu na Praça do Terreiro de Jesus:
__Terreiro de Jesus, tudo misturado na Bahia, professor. O Adro de Jesus, o Terreiro de Oxalá, Terreiro de Jesus. Sou a mistura de raças e homens, sou um mulato, um brasileiro. Amanhã será conforme o senhor diz e deseja, certamente será, o homem anda para a frente. Nesse dia tudo já terá se misturado por completo e o que hoje é mistério e luta de gente pobre, roda de negros e mestiços, música poribida, dança ilegal, candomblé, capoeira, tudo isso será festa do povo brasileiro, música, balé, nossa cor, nosso riso, compreende?
__Talvez você tenha razão, não sei. Devo pensar.
_Digo -lhe mais, professor. Sei de ciência certa que todo sobrenatural não existe, resulta do sentimento e não da razão, nasce quase sempre do medo. No entando, quando meu afilhado Tadeu me disse que queria se casar com moça rica e branca, mesmo sem querer pensei no jogo feito pela mãe - de - santo no dia em ele se formou. Trago tudo isso no sangue, professor. O homem antigo ainda vive em mim, além de minha vontade, pois eu o fui por muito tempo. Agora eu lhe pergunto, professor: é fácil ou é difícil conciliar teoria e vida, o que se aprende nos livros e a vida que se vive a cada instante?
__Quando se quer aplicar as teorias a ferro e fogo, elas nos queimam a mão. É isso que você que dizer, não é?
__Se eu proclamasse minha verdade aos quantro ventos e dissesse: tudo isso não passa de um brinquedo, eu me colocaria ao lado da polícia e subiria na vida, como se diz. Ouça, meu bom, um dia os orixás dançarão nos palcos dos teatros. Eu não quero subir, ando para a frente, camarado.

AMADO, Jorge. Tenda dos Milagres. São Paulo. Companhia das Letras. 2008. p.246-248.

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